The President

A carne é forte

Jean Jose Clini

GOURMET

A carne é forte

No bem-sucedido restaurante Urus, em São Paulo, a carne vem de produtores credenciados de exclusivas raças bovinas 100% taurinas. Como conta o CEO do grupo, Jean Jose Clini.

Por Ney Ayres              Retratos Anna Carolina Negri  

Desde maio do ano passado, a cidade de São Paulo vem celebrando o restaurante Urus. Em especial, por causa da carne servida. Ela vem de produtores credenciados do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, que se dedicam em sua maioria a uma raça bovina histórica: o caracu. As peças são maiores e saborosíssimas. Até mesmo porque o gado não é confinado e cresce sem pressa e com todo o cuidado e atenção.

Por trás desse sucesso está Jean Jose Clini, paulista de São José do Rio Preto, mas desde a infância criado no Mato Grosso. Seu pai, caminhoneiro, migrou para o estado vizinho em busca de oportunidades. Entre outros negócios no passado, tornou-se dono de uma distribuidora de alimentos e de um shopping center. 

Clini começou a trabalhar com o pai ainda garoto de calças curtas, aos 11 anos. Lavava pias e banheiros. Dali foi guindado a outros departamentos, formou-se advogado e descobriu a vocação para a gastronomia. Ao longo de 14 anos, viajou com a esposa pelo mundo, estudando como funcionavam os melhores restaurantes. Só então idealizou o Urus, que pretende expandir não só no Brasil, mas também para Londres, Miami e Dubai. 

THE PRESIDENT - Qual é a sua origem?

Jean Jose Clini Sou de São José do Rio Preto, mas passei a infância no Mato Grosso e me considero mato-grossense. Meu pai chegou ali como caminhoneiro. Progrediu até ser dono de um dos principais shoppings de Cuiabá. Antes disso, abriu a Casa do Sorveteiro, que, na década de 1990, chegou a estar entre as dez maiores empresas de distribuição alimentícia no país. Comecei ali, com 11 anos. Depois fui para o estoque, virei chefe de estoque e cheguei a comandar o setor administrativo e financeiro. Foi quando me interessei pelo departamento jurídico. Gostei e me formei advogado. Da Casa do Sorveteiro, fui para o shopping. Tornei-me chefe do setor jurídico, depois do administrativo e cheguei a CEO. Antes de vir para São Paulo, eu administrava em torno de 250 funcionários e 3 mil colaboradores. Tenho orgulho de falar que, nos últimos seis anos da minha gestão, não sofremos nenhuma ação trabalhista. Em paralelo, sempre me interessei por gastronomia e restaurantes.

Os restaurantes da praça de alimentação dentro do shopping ajudaram nesse interesse?

Exato. Eu fazia a gestão de auditoria nas lojas do shopping e me interessava, particularmente, saber como funcionavam os restaurantes. Isso me ajudou a entender qual era o processo administrativo, mas focado em restaurantes. Além disso, minha esposa e eu, nos últimos 14 anos, viajamos pelo mundo para conhecer restaurantes de diferentes nichos. Para idealizar algo novo, você tem que identificar uma dor do consumidor em um determinado ramo, e no caso do restaurante a dor sempre foi manter um padrão de qualidade para o cliente final, a procedência do que é entregue a esse consumidor e adequar isso às práticas ESG do novo consumidor que surgiu após pandemia. Um consumidor que se preocupa com todo o processo e quer fazer parte de algo maior. Esse é meu intuito como o CEO que encabeça esse projeto, que espero ser próspero e inovador.

Você chegou a ter um restaurante no Mato Grosso?

Sim. Fizemos um piloto lá, antes de vir para São Paulo. Nosso grupo queria testar toda a operação. Desenvolvemos com parceiros uma genética diferenciada no gado. Eu me orgulho disso, de ser um grão de areia no oceano e estar fazendo a diferença. Assim conseguimos promover esse desenvolvimento diferenciado e chegamos ao auge de, por dois anos antes da pandemia, 2018 e 2019, ter conseguido ganhar, pela Associação Brasileira de Criadores, o prêmio de melhor carne na degustação às cegas. Nessas degustações, não se adiciona o sal na avaliação. Identifica-se unicamente o terroir da carne ofertada.

Aliás, dizem que a carne servida no Urus nem precisa de sal. É verdade?

Esse é o diferencial. Nós cuidamos do terroir. As carnes no Brasil tinham demanda só de mercado interno. Isso mudou. Hoje há uma procura mundial, principalmente da China, como também ocorreu na Argentina. Com o aumento da demanda, o gado passou a ser confinado para facilitar o processo e a celeridade de produção, mas isso impacta a qualidade. Ou seja, piorou o terroir. Nossa carne tem um sabor diferenciado porque o gado é criado nos moldes europeus, gado solto no pasto, respeitando seu ciclo de vida e com acabamento somente em semiconfinamento. O capim é determinado pelas épocas do ano, de cheia ou seca, justamente para você garantir um terroir específico. 

Como é essa carne?

Ela não tem a fibra zebuína na composição. É pura, porque os ancestrais desse gado vieram do Oriente e se instalaram na Europa, nas regiões bálticas. Realizamos um forte estudo de genética e conseguimos, ao longo dos anos, desenvolver uma raça diferenciada. Ganhamos notoriedade desde então.

O que é o gado taurino?

Há cerca de 10 mil anos, houve a divisão dos gados zebuínos e taurinos. O zebu é índico, aquele gado que tem a corcova, o mais comum no Brasil. É da corcova que se extrai o cupim. O gado taurino não tem corcova, e nem o cupim descende do Oriente. Foi o primeiro desenvolvido pelo homem para a produção de carne, que se instalou principalmente no Hemisfério Norte, nos lugares mais frios do planeta. O zebuíno foi mais desenvolvido no Brasil porque se adapta de maneira mais fácil aos climas quentes, tropicais, além da rusticidade. O nelore, por exemplo, é um gado zebuíno proveniente da Índia. Chama-se nelore porque é o nome do porto indiano de onde veio. É um gado muito mais fácil de lidar, resistente a parasitas e temperaturas altas. Foi crucial para o desenvolvimento da pecuária no Brasil. Mas tem pouca aceitação na Europa.

“”Realizamos um forte estudo de genética e desenvolvemos uma raça de gado realmente diferenciada””

Por quê?

Porque tem uma fibra mais alongada e seca, que o mercado europeu não aprecia, embora o mercado asiático aprecie muito. Ele não gosta com a mesma intensidade que aprecia os taurinos. O nelore, pela rusticidade e praticidade, acabou submetido ao confinamento e à heterose com outras raças, que lhe garantiram celeridade no processo de abate e produção da carne. Mal sai da amamentação, já vai para a ração. Nem sequer vê o pasto. Já com o nosso principal produto, o caracu, é outra história. Há indícios muito fortes que ele tenha raízes em comum com o wagyu japonês. Gosto muito de contar dois dados históricos. O primeiro é que, quando Portugal fez comércio com o Japão, a colônia portuguesa mais próxima do Japão era o Brasil. Assim, muito provavelmente o wagyu, como conhecemos hoje, deriva do nosso gado, dos ancestrais do caracu moderno. O segundo ponto é que muito pouca gente sabe que a vitória nas batalhas da Guerra do Paraguai (1864-1870) se deveu ao gado que alimentou nossas tropas. Imagine, eram 150 mil soldados. Como cuidar de tanta gente? 

Como surgiu o Urus em São Paulo?

Tudo começou no Mato Grosso, no desenvolvimento do projeto, no qual formatamos o modelo base do restaurante. Já aspirávamos ter uma carne diferenciada do mercado tradicional. Entre os problemas para fechar o processo do restaurante, havia um maior. Como o restaurante só absorve na faixa de 28 a 32% da carne que compramos, precisávamos baratear os custos para fazer a operação girar. Então, formulamos o projeto para que o restante da carne fosse absorvido. 

Quando vocês vieram para São Paulo?

Era para inaugurarmos a casa em 2024. Fizemos uma ampla pesquisa de mercado, de 18 meses. Nela detectamos onde gostaríamos de estabelecer um ponto de relevância em São Paulo. Mas durante a pandemia surgiu uma oportunidade. Muitos estabelecimentos encerraram suas operações e, devido a isso, encontramos um ponto premium, que nos fez antecipar o projeto. Encontramos uma área maravilhosa, que consideramos o Champs-Élysées da cidade, que é a Avenida Europa. Montamos o Urus numa esquina privilegiada. Tem uma ótima área externa e interna. Pudemos desenvolver ali todo o potencial da casa, que completou 1 ano em 27 de maio de 2023.

Como é o cardápio?

O cardápio é um híbrido de carnes premium, que tratamos em nosso menu como uma iguaria. O mesmo ocorre nos demais itens dele. Valorizamos o que o Brasil tem de melhor. Na nossa concepção, os ingredientes brasileiros irão contar uma história de Brasil. Nosso carbonara, um prato típico italiano, tem ingredientes brasileiros, como pimenta-de-macaco e queijos da Serra da Canastra. Além disso, nosso peixe da casa é o pintado surubim, um peixe selvagem de rio, que vem direto do Pantanal. Esses são produtos, em sua maioria, vindos de pequenos e microprodutores. Nosso cardápio assim atende a diferentes paladares, de vegetarianos a carnívoros. Até as massas são frescas e feitas na casa. Quanto às carnes, há cortes que dificilmente se encontram em São Paulo. Nosso gado é grande, maior do que usualmente se consome em restaurantes paulistanos. Por isso, servimos um Tomahawk Especial de 1,8 kg. Os outros cortes principais do Urus são o Tomahawk Steak, a Bisteca Fiorentina e o T-Bone.

Os cortes servem a quantas pessoas?

O Tomahawk Especial serve quatro ou cinco pessoas. A Bisteca Fiorentina quatro. O Tomahawk Steak, duas ou três pessoas, o mesmo para o T-Bone. Há, claro, a costela. Ela passa por três preparos: forno combinado, jósper e parrilha. São 48 horas para ficar pronta. Também serve até cinco pessoas. Todos são de fato iguarias.

Qual a sua projeção para a abertura de novos negócios?

Pretendemos crescer, claro. Pensamos em unidades em Goiânia e Rio de Janeiro, bem como no Nordeste e em Balneário Camboriú (SC). Pelas nossas pesquisas, internacionalmente os mercados que seriam muito receptivos são Dubai, Miami e Londres, não só pela nossa carne mas também pela rica cultura brasileira de ingredientes. Numa época em que se valorizam o ecologicamente correto e a matéria-prima que vem da natureza, nada melhor do que apresentar o Brasil, o país com a maior quantidade de biomas do mundo. Montamos um cardápio elaborado por um consultor, Massimo Battaglini, um chef italiano de Veneza. Ele foi da Itália para o México, morou em outros países e estudou cada uma dessas culturas. Ele valoriza os ingredientes nacionais como poucos. Tem mais de 30 anos na América Latina, dos quais 20 anos só no Brasil.

Como você chegou ao nome do restaurante?

Pela nossa relação direta com a carne, nada melhor do que pesquisar a fundo a história e trazer o Urus, que era uma raça bovina que viveu no século 17 e foi extinta. Tinha uma carne diferenciada. Era um gado 100% taurino e não domesticado.

Procura investidores?

Sim. Hoje faço parte de um grupo que aspira projeções nacionais e internacionais, em um projeto sólido e consolidado, com muitos diferenciais e que cumpre seu papel ao resolver algumas dores do mercado como um todo. Estamos formatando o projeto ideal para a expansão da marca. Mais do que um restaurante, o Urus é uma celebração à vida e aos momentos únicos.