Sheyla Castro Resende, CEO da Gafisa, e Luis Fernando Ortiz, vice-presidente, comandam a estratégia de centrar força no segmento de luxo de incorporação e construção civil
Retratos Claudio Gatti
A construção civil foi um dos muitos setores assolados pelos efeitos econômicos da Covid-19. À pandemia, somou-se o súbito aumento do preço dos insumos. Referência no setor, fundada no Rio de Janeiro ainda em 1954 com o nome Gomes de Almeida Fernandes, a incorporadora e construtora de capital aberto na Bolsa de Valores (B3) Gafisa S.A resolveu reagir a esses entraves com uma mudança estrutural para uma transição de segmento no mercado imobiliário residencial de luxo.
Dessa maneira, atuou com planejamento estratégico, reduziu os custos, o quadro de funcionários, a área de atuação e passou a se dedicar apenas ao mercado de luxo, concentrando-se nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Com mestria diminuiu, em muito, o número de construções, e manteve o Valor Geral das Vendas (VGV) elevado, o que poderia parecer improvável.
Essa estratégia vem sendo comandada por Sheyla Castro Resende, CEO da Gafisa, e Luis Fernando Ortiz, vice-presidente da companhia. No cargo há dois anos e meio, a engenheira civil Sheyla está na empresa há 16 anos, tendo iniciado na Gafisa como trainee. Trabalhou por alguns anos como engenheira de obras, antes de se encaminhar para a área corporativa. Foi diretora de gestão e recursos humanos e esteve à frente de outras áreas, como marketing institucional. Luis Fernando Ortiz também tem muito tempo de casa: 14 anos. Graduado em engenharia civil, estudou finanças corporativas e começou na empresa na área de incorporação com foco em aquisição de terrenos. Sempre se interessou pela área de negócios e pelo mercado imobiliário.
Como a Gafisa se reposicionou, visando o mercado de luxo?
Sheyla Castro Resende – Isso começou há cerca de cinco anos, quando estávamos prospectando um terreno no Rio de Janeiro, num momento em que o Brasil estava vivendo os problemas da pandemia e do aumento dos preços dos insumos. A margem de lucro dos projetos menores não absorvia essas mudanças. Outro item importante foi a busca de foco, para fazer uma empresa mais leve e bem-direcionada. Ao comprarmos o último terreno na avenida Delfim Moreira, no Leblon, no Rio de Janeiro, entendemos que começaríamos um projeto-piloto que nos endereçou 100% para o segmento de luxo.
Foi o Edifício TOM Delfim Moreira?
SR – Sim. Ali surgiu o momento da transição. Começamos um trabalho de aprofundamento. Quando há foco, as energias e esforços são direcionados, e toda a empresa caminha na mesma direção. Acertamos também que seríamos uma empresa menor, com poucos projetos, porém impactantes e que tivessem o mesmo volume de VGV [Valor Geral das Vendas] que conseguíamos fazendo dez a quinze projetos de médio e alto padrão. Entendemos que podemos ser uma empresa enxuta e eficiente, muito mais ágil e com investimentos e despesas menores e, ainda assim, ter o mesmo volume de faturamento. Isso realmente aconteceu. Do último ano para cá reduzimos em quase 40% os nossos custos fixos. E mantivemos o VGV.
Uma decisão ousada, não?
SR – Em muitos momentos, foi difícil tomar a decisão e abrir mão de um determinado terreno que até então era estratégico, ou de alguma negociação que estávamos próximos de adquirir, mas que não estava bem localizado o suficiente para projetos de luxo. Saber falar os “nãos” foi muito importante, tanto quanto compreender com profundidade o mercado de luxo e o perfil do nosso cliente. Contratamos a consultoria da MCF, de Carlos Ferreirinha, especialista nesse mercado, para nos ajudar na estratégia e no aculturamento interno. Todos nós da Gafisa passamos por uma transformação e juntos nos preparamos para este novo momento.
Além disso, revisitamos toda a régua de relacionamento com o cliente e os contratos jurídicos. Entendemos, assim, a importância de proporcionarmos uma experiência ao cliente desde o momento em que ele entra em nossos espaços showroom, obras ou escritório até o momento de entrega e assistência técnica. Não é simples.
“Não queremos ser a maior incorporadora, mas uma referência no mercado imobiliário residencial de luxo”, diz Sheyla Castro Resende.
Este cliente é muito exigente, claro.
SR – O que eu posso fazer para surpreender aquela pessoa que pode comprar tudo? Mudamos, por exemplo, o nosso canal de comunicação. Quando este cliente entra na base, ele é recebido pelo concierge, não mais por uma central de atendimento. A Gafisa é uma empresa de 70 anos, que aprendeu com as experiências que teve. Mas foi preciso um trabalho de imersão no segmento de luxo para todos os colaboradores. Se todo mundo não tivesse a mesma cabeça e cultura, não conseguiríamos fazer essa transição. Ajudou muito o fato de a Gafisa ser uma empresa conhecida, uma marca muito forte. As pessoas gostam da empresa.
Como foi o treinamento da equipe?
SR – Foi intenso, trazendo muitas informações sobre os códigos de luxo, que considero o principal. Isso começa nos pequenos detalhes do dia a dia e segue até o contrato, o pós-venda. Quando a gente recebe alguém, não é só servir uma xícara de café. É preciso ficar atento à forma como você vai servir. Isso vale para o café e para o jurídico, para todos os setores da companhia.
Luis Fernando Ortiz – Para uma compra tão valiosa, o cliente quer entender as nuances do contrato. O nosso jurídico está preparado para atendê-lo, explicar cada cláusula, eventualmente em outras línguas. Para surpreender um comprador que tem acesso a tudo, você tem que ter muito repertório. Não basta oferecer o melhor terreno e contratar o melhor arquiteto. Você tem que ter conhecimento urbanístico, entender o cliente que está interessado nesse tipo de projeto, e não desagradar o entorno. Nosso time comercial vive um lifestyle de luxo e consegue, em cada abordagem com os potenciais clientes, tornar a negociação quase um exercício de networking e disso resultar em um processo de venda mais qualificado. Nossas referências são produtos qualificados, como iates, jatos e carros com preços de vendas proporcionais àqueles oferecidos nos nossos produtos.
Dá para exemplificar algum detalhe usado para surpreender os clientes?
SR – Na entrega do TOM Delfim Moreira, fizemos um vernissage para o evento de entrega de chaves. O evento foi comandado por uma curadora que apresentou aos nossos clientes as obras de arte dispostas na galeria do térreo. Ela explicou todas as obras, num evento exclusivo, só para os clientes, que puderam levar os amigos e familiares. No mesmo dia, levamos esses clientes à unidade de cada um, onde foram surpreendidos com amenities, livros das obras de arte e uma peça original dos Irmãos Campana – há uma obra diferente para cada cliente/apartamento.
LFO – O luxo também envolve uma questão de escassez. Aquele produto, quanto mais escasso, mais único. Um bom exemplo é o nosso empreendimento Allard Oscar Freire, lançado em dezembro de 2024 em São Paulo. Começamos agregando um grande arquiteto e uma grande marca de hospitalidade. O arquiteto é o Arthur Casas, com conhecimento vasto das linhas e estilos de arquitetura no Brasil. A marca de hospitalidade (Allard), é assinada por Alexandre Allard, criador do complexo Cidade Matarazzo. A combinação do nosso know-how de 70 anos de incorporação e construção com dois gênios como Arthur Casas e Alexandre Allard traduz no projeto detalhes preciosos e urbanismo. Somamos arte, gastronomia, bem-estar, em um único projeto de arquitetura com uma localização relevante, na esquina da rua Oscar Freire com a Consolação, no coração do Jardins, em São Paulo. A junção da localização com esses criadores e o produto resultante torna tangível nosso discurso para o cliente. É quase como vender uma obra de arte que não se repete.
São muitos os valores agregados.
LFO – Há um potencial de crescimento no mercado premium, uma procura incessante pelo luxo autêntico, com mais storytelling. Se esse tipo de perfil de alta renda tem acesso a tudo, o que ele pode ter de novo? Pois bem, ele pode ter esses encontros únicos, seja num projeto, seja num evento. Esta é a sensação que a gente quer gerar, que transmite o que a marca quer ser e vem sendo nesses últimos anos.
SR – É preciso que estejamos presentes em todos os detalhes, em todos os momentos. O nível de detalhe com que nos preocupamos, por exemplo, a seleção e o treinamento dos funcionários, um a um, concierge, seguranças, síndico, para trabalharem no TOM. É um cuidado que se estende além da venda e aquisição do imóvel. Isso também faz a diferença.
Cada apartamento pode ser customizado?
LFO – Oferecemos todas as customizações possíveis, além dos nossos projetos apresentarem plantas flexíveis. A ideia da personalização precisa nascer na concepção para atender os desejos e estilos diferentes e oferecer aos clientes uma experiência completa, demonstrando que estamos preparados para atender de forma personalizada e individual.
SR – O Allard Oscar Freire, por exemplo, tem uma flexibilidade que permite rotacionar à vontade. O cliente escolhe onde serão os quartos, como quiser. Existe um pé-direito muito confortável para que você possa ter desvio de tubulação. O ideal é que esse trabalho seja feito pela própria incorporadora durante a obra, contando com a nobreza dos materiais e qualidade de execução.
Todos os imóveis são nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro?
SR – O foco é muito importante para a companhia. Atuamos em São Paulo e Rio de Janeiro, mas, é claro, estamos sempre analisando o mercado, observando as oportunidades.
LFO – A Gafisa foi fundada no Rio de Janeiro. Logo depois, montou sua base em São Paulo, e hoje temos escritórios nas duas cidades. São localizações muito importantes não só para a empresa, mas também para o país. O mercado de luxo exige total atenção. Focar em São Paulo e Rio ajuda. Além disso, esses mercados são comprados por todo Brasil e, principalmente, no Rio de Janeiro por estrangeiros também. Ou seja, o mercado é mais amplo que o entorno dos bairros.
Vocês têm uma equipe especializada em prospectar terrenos?
LFO – Temos uma curadoria que talvez seja um dos itens mais importantes da nossa empresa hoje. Gostamos muito das esquinas, porque propiciam projetos de arquitetura magníficos. Encontrar lugares ideais não é fácil. Se o bairro é ótimo, mas o endereço não é o melhor, isso será percebido pelo cliente.
SR – Criamos uma lista de itens inegociáveis, que é checada por um comitê interno. Somos muito criteriosos e muito detalhistas em cada escolha.
Como é a questão do financiamento para esse cliente que, em tese, pode até pagar à vista?
LFO – Procuramos ser muito flexíveis. Esse cliente pode tudo, mas muitas vezes é uma decisão particular. Se pode pagar à vista, mas prefere parcelado, para acompanhar a construção, sem problemas. Se tiver bom spread, pode financiar uma parte, por que não? Há clientes que preferem ir pagando conforme geram receita em seu negócio. Criamos formatos que se encaixam, cada negociação tem o seu formato particular.
SR – O certo é que não podemos mais dizer não ao cliente. Somos flexíveis em todas as frentes.
Há clientes que não compram para morar, mas como forma de investimento, certo?
LFO – A compra é sempre vista de duas formas. Mesmo que eu vá morar no imóvel, ele é um investimento. Não podemos ter argumentos apenas para a moradia. Precisamos ter a defesa do investimento. Antes de tudo, trata-se de um ativo que vai se valorizar, é essa a tendência. Um apartamento em Ipanema, de frente para o mar, assim como um outro no melhor ponto da Oscar Freire, tende a se valorizar. Quanto? É difícil prever. Mas a certeza é que esse ativo não se desvalorizará.
Vocês gostariam de frisar mais algum diferencial em relação aos concorrentes?
SR – Existem empresas fazendo excelentes produtos de luxo, mas o nosso diferencial é que a Gafisa está 100% voltada para o mercado de luxo. Descobrimos que havia esse nicho, um espaço para ser ocupado. Não queremos ser a maior incorporadora, mas uma referência no mercado imobiliário residencial de luxo.
LFO – Havia indicadores da existência desse mercado, como filas de dois anos para comprar um jato executivo. Ou lista de espera com a mesma duração para carros de luxo. Sem esquecer de condomínios fora de São Paulo, com tickets médios acima de R$ 15 milhões. Nossos projetos carregam lifestyle, porque esses produtos não podem ser só um empreendimento imobiliário, eles têm que ter uma história a mais, experiências.
O mercado de luxo lida com grifes. A Gafisa pretender ser uma delas?
LFO – Nossa ambição é nos tornarmos uma empresa que consiga, a cada projeto, trazer algo inusitado, incrível e espetacular. Se secundariamente trouxer a sensação de que a marca é cada vez mais valiosa, será ótimo, claro.
SR – Você não precisa ostentar. É até deselegante. As pessoas precisam identificar, perceber. Por isso não fizemos um trabalho institucional para falar da transformação da empresa. Começamos com a entrega do TOM. Decidimos deixar que os projetos falassem por nós.
Quais são os novos projetos?
LFO – Dois deles serão no Rio, ambos em Ipanema. Vamos anunciá-los já nesse segundo semestre. Um deles é um retrofit espetacular, de um prédio de 19 andares. Haverá outro projeto, em São Paulo, muito grande. Não posso dar detalhes porque ainda estamos em fase de aquisição do terreno.
“Nossos projetos carregam lifestyle. Mais do que empreendimentos, apresentamos história e experiência”, diz Luis Fernando Ortiz.
E quanto a preocupação com a sustentabilidade?
SR – Temos um Comitê ESG, formado por pessoas de diversas áreas dentro da companhia. Nossas ações nesses três pilares vão bem além do regulatório. Queremos fazer de verdade, e não uma autopromoção viabilizada por marketing. O nosso Comitê ESG aprofundou as práticas ambientais, sociais e de governança e hoje nossos resultados são expressos nos relatórios de sustentabilidade.
LFO – Pensamos além do reuso de água, de uso de energia renovável, que, claro, também estão entre nossas preocupações. Nesse projeto da Oscar Freire, por exemplo, a Gafisa vai plantar 250 árvores adultas nativas da Mata Atlântica. Incrível, né? Vamos plantar nas calçadas e nas áreas comuns. É incalculável o que isso trará de volta para o meio ambiente. Nos permitirá chegar muito próximo a uma economia de baixo carbono.
SR – Do lado social, sabemos que um dos nossos maiores patrimônios são as nossas pessoas. Assim incentivamos capacitações, treinamentos e oferecemos diversos benefícios para os colaboradores. Um benefício diferencial é a plataforma de saúde mental, o Zen Club. A ideia é proporcionar um ambiente favorável e seguro para as pessoas no dia a dia.
Quantos funcionários a empresa tem hoje?
SR – São 287, somando a equipe de obra. Ou seja, a equipe de engenheiros, mestres, encarregados. A empresa está bem enxuta. Em 2018, eram quase 800 funcionários. Reiterando, mantendo a margem de faturamento dos nossos produtos.
LFO – O ciclo imobiliário é longo.
As mudanças geralmente demoram alguns anos para ancorar. Iniciamos o ESG da Gafisa no ano de 2021 e, a partir daí, aprimoramos nossas práticas. Desses 287 funcionários, quantos são mulheres?
SR – São 60% homens e 40% mulheres. Por se tratar de um setor predominantemente masculino, como o de engenharia, é um número elevado. A equidade de gênero é algo contundente na Gafisa, representado inclusive nos cargos de alta liderança. São três, a partir de mim. A Taimir Barbosa é a nossa diretora de controladoria. Já a diretora de engenharia é a Giselle Rosa. Essa cultura da Gafisa em relação às mulheres vem de muitos anos. Na nossa empresa, se a pessoa é um excelente profissional, terá oportunidade de crescer, independentemente se é homem ou se é mulher.