JC Pavone, diretor de design da Volkswagen nas Américas desenha há 24 anos uma carreira movida a motores e formas
Por Juliana Amato
Com o pé no acelerador e os olhos aumentados pelas lentes de óculos pretos de aros espessos, José Carlos Pavone fala rápido. Mas nenhuma resposta soa apressada. Aos 47 anos, ele é o homem por trás do traço de carros icônicos da Volkswagen, como Jetta, Nivus, Virtus, Passat, além do novíssimo Tera, modelo que alcançou 12 mil pedidos nos primeiros 50 minutos do lançamento. Pavone comanda o design da marca para a América do Sul e América do Norte, cargo estratégico, distribuindo gostos, culturas e fusos distintos.
Apenas em 2024, fez 23 viagens internacionais. Mais do que milhas, acumula experiências. Uma delas é adaptar modelos para outros mercados e refazer, com sotaque brasileiro, a lógica do design global. O Nivus, lançado na América do Sul para depois conquistar a Europa, é prova disso. O carro que é um feito raro na indústria, resultado da obstinação com a qual Pavone construiu sua trajetória de 24 anos na Volks.
Nascido no bairro do Mandaqui, zona norte paulistana, onde viveu até os 23 anos, o designer cresceu desenhando carros. Não eram rabiscos genéricos de infância, mas visões tecnicamente erradas e apaixonadamente corretas do que seria seu futuro. O interesse pela profissão surgiu cedo, quando Angelo, o pai, mostrou a ele e Marco, o irmão gêmeo “cinco minutos mais velho”, uma reportagem com o então chefe de design da Volks. O ano era 1991. A dupla enviou alguns de seus desenhos ao executivo. “Ele ficou impressionado com a qualidade dos desenhos, principalmente porque tínhamos apenas 12 anos.”
Os desenhos se infiltraram na rotina de peneira de futsal do Palmeiras e nos ensaios de violão. O futebol, aliás, não era brinquedo. Queria ser jogador profissional. Quase foi. “Mas decidi desenhar carros por duas coisas: paixão e medo de ter um trabalho chato”, resume. Em casa, o som vinha do pai, italiano da Sicília, beatlemaníaco. “Cresci ouvindo Beatles, Rolling Stones, The Police, Talking Heads”, recorda. Na adolescência, o gosto migrou de década. “Passei ouvindo meu grunge.”
Mesmo escolhendo outra trilha, algumas vocações não se perderam. Hoje, em sua sala da VW, em São Bernardo do Campo, o violão e a guitarra repousam ao lado de retratos a óleo pintados por ele. Entre os personagens imortalizados estão David Bowie, Jack Nicholson e Samuel L. Jackson. Completando a cena, há também naturezas-mortas. Alguns de seus afetos mais íntimos também sucumbiram ao seu traço: a mulher, Camila, e outro Bowie, seu cachorro. E crava: “Tenho zero interesse em ter um quadro feito por IA. Do ponto de vista criativo, um carvão e um papel batem qualquer tipo de tecnologia”.
Traço inaugural
No terceiro ano do curso de design de produto, no Instituto Presbiteriano Mackenzie, foi incentivado por um professor a bater na porta da Mercedes-Benz. Fez a prova. Mandou bem. Faltou saber que só contratavam alunos do último ano. Por sorte, o candidato escolhido deixou o cargo e chamaram o segundo colocado. Ele mesmo. Em 2002, foi chamado pela Volks. Seu primeiro projeto? O facelift de um caminhão.
Não demorou até ter traço próprio. Dois anos mais tarde, outro golpe de sorte: aos 24 anos, foi chamado para trabalhar em Wolfsburg, na Alemanha, cidade erguida para abrigar os operários da maior fábrica do mundo da VW. Sob um frio que, segundo ele, “te expulsa da rua em 30 segundos”, aprendeu a negociar com engenheiros de pouca fala e rigor técnico de sobra, e mergulhou no projeto de um SUV feito sobre a plataforma do Golf brasileiro. Era para ser coisa de três meses. Durou sete anos. “Eu tinha clareza de que precisava aprender com os projetos europeus”, conta. Além do frio, que já seria castigo suficiente, o mais difícil de contornar foi o idioma de Goethe.
Ainda assim, valeu pelo aprendizado, imenso. E decisivo. Na sede alemã, descobriu como desenhar modelos como Gol, Polo, Golf, com as diferenças sutis que ele não conhecia. “Aprendi demais, numa velocidade absurda. Foi o que mudou a minha carreira.”
Vitamina D de Design
De um convite para trabalhar na Ferrari, surgiu a conversa com o chefe. Na tentativa de convencê-lo a ficar, seu superior apresentou um leque generoso para atuar “na casa”. O designer, que àquela altura já sabia bem o que queria — entre outras coisas, ficar longe do frio europeu — aceitou. E o que ele queria, no fundo, era desenhar de tudo. “Adoro trabalhar na Volks porque quero desenhar carro pequeno, médio, grande, SUV, sedã, picape, van…”, lista. “Essa diversidade é o que mais me ensina.” Fazer carro esportivo, para ele, é “um caminho fácil”, comenta, com a ironia de quem já viu talento tropeçar na fartura.
Com essa convicção, pediu para ser transferido para a Califórnia, lar do centro criativo da VW, berço do New Beetle e Audi TT. Mesmo com sol e mar da praia a poucos passos de casa, quase nunca pisava na areia. Em cinco anos, foi à praia apenas cinco vezes. “Curti pouco”, resume, sem lamentação. O fato de seus dois filhos, Lucca, hoje com 12 anos, e Sofia, 11, terem nascido naquele período fez parte da equação. Mas, no fundo, seu verdadeiro lazer era desenhar até de madrugada.
“Aprendi muito sobre diversidade de perfis, proporções e a filosofia das marcas.” Dentro do estúdio, o clima era de competição saudável. Entre os oponentes, um velho conhecido: Marco, seu irmão gêmeo, que compartilha uma trajetória brilhante ao lado de JC Pavone, assim como um currículo igualmente robusto como chefe de design exterior na VW. Outros encontros em Los Angeles foram menos previsíveis, como quando viu a atriz Renée Zellweger, sua vizinha, na lavanderia do prédio.
Questões de proporção
“Não nasci sabendo.” Talvez por isso aprendeu a olhar. Primeiro, na quitanda do avô italiano na Penha, zona leste de São Paulo, um senhor de chapéu e cachimbo, sempre alinhado, mesmo para vender frutas. Depois, pela Europa afora. Milão, Hanôver, Barcelona, cidades onde se veste bem não por etiqueta, mas por corte, proporção e respeito pelo efeito que a roupa produz. Com 1,68 metro, aprendeu que o segredo está em alongar. “Não é sobre marcas, é sobre intenção.”
Gosta de seguir um alfaiate na internet que explica as origens de roupas como o terno, ou ainda, porque se usam botas, assim como saber mais sobre como distinguir o equilíbrio de um corte bem-feito de um apenas correto. “Quando vejo alguém de terno com meia branca eu quase tenho um treco”, diz, entre riso e lamento. Por isso, veste-se como quem toca um instrumento: com afinação. A pegada é rock and roll, com cera nos cabelos, coturnos e anéis. “Já nem ouço as piadas sobre meu jeito de me vestir. Quando apareço mais sério, de terno, é que estranham.”
Moda e música, ele sabe, são inseparáveis. “Ouvi o Liam Gallagher, do Oasis, dizendo que o cara pode ter o melhor som do mundo, mas se não souber se vestir, não vai funcionar.” Afinal, ninguém quer um pôster na parede de alguém que parece comum. É sobre imagem, mas também sobre desejo. E se a moda veio da música, a arquitetura veio do afeto: no apartamento novo, que projetou junto com Camila, hoje designer de joias, cada cor, cada móvel, cada aresta foi pensado como um acorde. Seu trabalho na VW traz para o universo pessoal uma lição que atravessa tudo isso: o bom design não chama atenção, é atemporal e envelhece bem.
O Brasil como projeto
Ao fim da temporada californiana, em 2016, Pavone voltou ao Brasil e assumiu a liderança de design para a América do Sul, aos 38 anos. Seu foco inicial? “Não apanhar nas reuniões. Sempre fui o mais novo em tudo. O mais importante era mostrar o que eu tinha aprendido fora.”
O novo cenário contava com uma equipe desmotivada, com poucos projetos, mas com altas expectativas no novo executivo. “Prometi que ia tentar fazer alguma coisa diferente.” Fez. Em pouco tempo, reergueu o moral do estúdio com o Gol GT, um sucesso inesperado, executado em apenas seis meses.
Mas foi com o Nivus que Pavone firmou sua assinatura. Um projeto nascido de uma recusa. “Me pediram um Cross-Polo, e eu disse: nem a pau.” Reimaginou o briefing, redesenhou o carro, vendeu a ideia para a alta liderança. Foi o primeiro wprojeto brasileiro a estourar na Europa. Como diria o board mais tarde, o designer brasileiro tinha razão.
Há 16 anos no Brasil, Pavone não esconde o gosto de estar por aqui falando a língua nativa e saboreando um bom churrasco. Ele acredita que o brasileiro faz muito com pouco, e faz bem. “Sabemos aproveitar coisas que já existem e trazer um novo frescor”, diz, ao lembrar de quando levou o Tera para a Europa.
Da sala da VW no ABC, percebe como o jeito brasileiro de apresentar ideias não passa despercebido em terras distantes. “Quando fazemos uma apresentação, os colegas europeus ficam alucinados porque usamos músicas brasileiras e mostramos tudo de um jeito claro.” Um talento que não caiu do céu, foi sendo burilado ao longo dos anos, na lida diária com ideias e a criatividade que, por aqui, nasce mais de urgência e de orçamentos menos generosos.
Pavone credita parte da confiança que carrega no traço à mobilidade que o grupo lhe ofereceu. “Se eu tivesse passado 24 anos aqui em SBC, eu não teria a bagagem de hoje, algo essencial para um designer”, sintetiza ele, que apesar de rabiscar com o mouse e no iPad, está sempre com um lápis na mão. Por mais que o mundo mude de escala, formato ou combustível, este designer sabe que toda grande ideia começa com uma linha no papel.