Silvia Massruhá, primeira mulher a presidir a Embrapa, fala sobre inovação, sustentabilidade e o papel da pesquisa na transformação da agricultura brasileira
Por Mario Ciccone
A trajetória de Silvia Massruhá à frente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) une ciência, tecnologia e desenvolvimento sustentável. Ela é a primeira mulher a assumir a presidência da instituição, em maio de 2023. Silvia carrega não apenas a responsabilidade de conduzir uma das mais respeitadas organizações de pesquisa agropecuária do mundo, mas também o simbolismo de representar uma mudança de época em um setor marcado pela predominância masculina.
Com 58 anos, casada com Ério e mãe de duas filhas, Karina e Júlia, ela construiu sua carreira a partir de uma formação em ciência da computação, automação e inteligência artificial, sempre orientada pelo desejo de levar a inovação tecnológica para o campo.
Silvia graduou-se em análise de sistemas na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e fez mestrado em automação na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Seu doutorado em computação no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) resultou em um modelo de inteligência artificial voltado ao diagnóstico de doenças em plantas — um tema diretamente conectado às dores reais de produtores rurais.
Seu percurso na Embrapa, iniciado em 1989, foi pautado pela aposta em tecnologias capazes de ampliar o acesso à ciência, seja por meio da internet, de softwares pioneiros ou das soluções digitais que hoje marcam o Agro 4.0. Projetos como o Semear Digital (Centro de Ciência para o Desenvolvimento em Agricultura Digital), que democratiza a inovação em pequenas e médias propriedades, exemplificam a sua visão de um futuro em que o conhecimento científico deve estar ao alcance de todos.
Na vida pessoal, Silvia cultiva hábitos simples que a ajudam a manter o equilíbrio diante da intensidade de sua função: caminhadas ao ar livre, momentos de lazer com a família nos fins de semana e muita leitura. No momento, dedica-se ao livro O Fazer Estratégico: Dez Habilidades para Maior Agilidade e Eficácia, de Nancy Franklin, obra que propõe uma reflexão sobre como líderes podem se preparar para a complexidade do mundo atual. Silvia ressalta a importância de manter a pesquisa agropecuária conectada às demandas globais por sustentabilidade, eficiência e inclusão.
THE PRESIDENT _ De que maneira o conhecimento em tecnologia da informação e inteligência artificial influenciou sua trajetória profissional até a presidência da Embrapa?
Silvia Massruhá – A relação entre a minha formação e a Embrapa é total, porque sempre busquei formas de aplicação dos recursos da tecnologia na melhoria das condições no campo. Sempre acreditei no potencial da agricultura automatizada, conectada e integrada em benefício do desenvolvimento, principalmente de produtores rurais. A minha tese de doutorado em computação aplicada foi sobre o modelo de inteligência artificial para diagnóstico de doenças de plantas. Lidar com doenças e pragas sempre foi um desafio para produtores.
Um dos exemplos mais emblemáticos do que eu acredito é o projeto Semear Digital, que democratiza a tecnologia, por meio de Distritos Agrotecnológicos (DATs). São espaços colaborativos que funcionam como um piloto de fazendas inteligentes, onde diferentes tecnologias são testadas e adaptadas à realidade local de pequenas e médias propriedades rurais.
Qual o significado de ser a primeira mulher a presidir a Embrapa?
SM – Apesar de todas as dificuldades, esse é um momento de transição rumo a uma nova era em que será cada vez mais comum ver mulheres na liderança, principalmente no universo da pesquisa agropecuária. Mas antes de tudo, representa a oportunidade para uma nova trajetória de gestão, em um contexto em transformação, em que há necessidade de direcionar a ciência para antever cenários de um futuro que já está acontecendo.
De 2009 a 2022, você trabalhou como chefe-geral e de Pesquisa e Desenvolvimento na Embrapa Agricultura Digital. Quais foram os principais desafios e realizações?
SM – A Embrapa Agricultura Digital é o centro de pesquisa onde ingressei, em 1989. Em 2025, completa 40 anos de existência, com foco no avanço da pesquisa com aplicação das tecnologias da informação e comunicação na agropecuária. Tive a oportunidade de atuar na chefia-adjunta de P&D e, posteriormente, na chefia-geral. Foi um período que culminou com a emergência acelerada de tecnologias disruptivas e habilitadoras da transformação digital que impactaram o setor agropecuário — o chamado Agro 4.0.
Nesse período testemunhamos um agro cada vez mais baseado em dados e conectividade. Foi um esforço de reposicionamento que buscou, com sucesso, melhor representar a sua atuação em PD&I aplicada nas cadeias produtivas, abrangendo desde a pré-produção, passando pela produção (com soluções dentro da porteira) até a pós-produção.
Entre os destaques alcançados estão, por exemplo, o avanço nas pesquisas em inteligência artificial, visão computacional e robótica, aplicadas em projetos para monitoramento de bovinos, de cultivos e identificação de doenças em plantas; a rastreabilidade de produtos agroindustriais baseada em tecnologia blockchain; o aprimoramento de metodologias e soluções em apoio a políticas públicas, como o programa de Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc) que dá suporte ao seguro rural no Brasil; o lançamento da primeira plataforma de APIs para o agro no Brasil, a AgroAPI, que disponibiliza dados, informações e modelos que podem ser integrados em softwares e aplicativos de outras empresas e instituições; a cooperação técnica com parceiros importantes do setor produtivo para avançar em protocolos para medir o carbono no solo; a parceria desde 2012 com a Unicamp em pesquisas para soluções biotecnológicas para adaptação de culturas agrícolas às mudanças climáticas; e, por fim, ao final de 2022, a aprovação junto à Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) do projeto Semear Digital, focado na inclusão socioprodutiva e digital de pequenas e médias propriedades.
O investimento estratégico contínuo também permitiu a estruturação de uma infraestrutura computacional de alto desempenho representada pelo nosso Data Center, que deu suporte aos projetos da Embrapa Agricultura Digital e de outras unidades. Tivemos ainda um esforço de aproximação junto a diversos atores do ecossistema de inovação. Buscamos um equilíbrio em nossa carteira de projetos, combinando fontes externas de recursos e projetos cofinanciados, em complemento aos recursos do Tesouro. A celebração de parcerias importantes refletiu em um salto na captação de recursos, que passaram de R$ 600 mil em 2015 para cerca de R$ 11 milhões em 2021.
Considerando a coordenação de projetos em inteligência artificial, mineração de dados, sistemas especialistas e softwares aplicados ao agronegócio, qual é a percepção sobre o impacto dessas tecnologias na modernização da Embrapa?
SM – A abrangência de possibilidades dessas tecnologias foi fundamental. A partir delas, ampliou-se o atendimento de demandas dos diversos setores com os quais lidamos, além das cadeias produtivas. São incontáveis os exemplos, como a disponibilização de banco de dados completos para suporte à pesquisa, o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc) — hoje, fundamental como recurso de política pública e orientação para produtores —, orientação de uso de fertilizantes, o Sistema Brasileiro de Agrorrastreabilidade (Sibraar), que é uma tecnologia digital blockchain para a rastreabilidade de produtos agroindustriais; o Sistema de Análise Temporal da Vegetação (SATVeg), destinada à observação e análise de perfis temporais de índices vegetativos.
Temos ainda o ICVCalc-Embrapa, que calcula o impacto ambiental de atividades agrícolas, o Agrotag, para sistemas extrativistas sustentáveis, o ICVCalcWeb, que serve para gerar inventários de produtos agrícolas; e o API AgroFit, uma das interfaces de programação que ajudam na integração ou criação de outros programas ou software e mais tantas outras ferramentas.
O Centro de Ciência para Desenvolvimento em Agricultura Digital, viabilizado pela Fapesp, tem como objetivo ampliar o acesso à tecnologia no campo. Como se estruturam as ações e quais resultados já podem ser destacados?
SM – O Semear Digital é coordenado pela Embrapa Agricultura Digital, com financiamento da Fapesp e atua por meio de ambientes de produção, ou seja, os Distritos Agrotecnológicos (DATs), localizados em dez municípios brasileiros. O objetivo é desenvolver ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação em tecnologias emergentes, com foco na inclusão socioprodutiva de pequenos e médios produtores rurais. Está pautado no apoio à superação de desigualdades no campo, a partir da pesquisa, da inovação em tecnologia da informação e comunicação (TIC).
Também fazem parte do Semear o Instituto Agronômico (IAC/SP), o Instituto de Economia Agrícola (IEA/SP), a Universidade Federal de Lavras (UFLA), o Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel) e o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD).
O Semear está estruturado em três pilares: conectividade, aplicações inovadoras e difusão e mobilização, que vão orientar os projetos que serão financiados com recursos privados ou públicos. No caso da conectividade, a ideia é utilizar as tecnologias disponíveis comercialmente, levando em conta critérios econômicos (como investimentos e custos operacionais), disponibilidade de infraestrutura local, modelos de operação e de negócios e os requisitos das aplicações.
A aplicação de tecnologias como inteligência artificial, blockchain e internet das coisas revela uma aposta em soluções interdisciplinares. Cite iniciativas que exemplificam essa abordagem.
SM – Podemos destacar o Sistema Brasileiro de Agrorrastreabilidade (Sibraar), executado com tecnologia blockchain, para rastrear produtos agroindustriais. Trata-se de uma cooperação técnica assinada com a Associação Brasileira de Automação, desenvolvedora de padrões globais de identificação que atua em 150 países. Também temos a tecnologia blockchain usada em registro de transações financeiras em um projeto inovador, em parceria com o setor que atua na cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Gera uma ferramenta que armazena, registra, organiza e rastreia os processos e produtos agroindustriais.
Quanto à inteligência artificial, é bastante utilizada tanto na otimização de processos internos quanto na pesquisa científica e criação de tecnologias. Podemos citar como exemplos, sistemas baseados em lógica clássica e aprendizado de máquina; e as ferramentas GEMINI (usada para elaboração de propostas, revisão de textos, tradução e compilação de documentos); NotebookLM (que permite definir as fontes de dados do modelo de IA) e IBM Watson e DialogFlow (usados na construção do ChatBot da Embrapa, denominada Flora).
“O desenvolvimento do agro brasileiro ocorre graças à ciência e a uma grande rede de parceiros, que garantem a liderança do país no setor”.
Parcerias internacionais com instituições como o Cirad resultaram em projetos como TerrAmaz, Sustenta e Innova. Qual é a relevância dessas cooperações para a pesquisa agropecuária sustentável no Brasil?
SM – A Embrapa, desde o início da sua trajetória, tem se consolidado a partir de uma rede de cooperação internacional forte, baseada em intercâmbio de conhecimento entre pesquisadores de vários países. A atuação no exterior se destaca também pela representação brasileira nos principais fóruns internacionais da ciência.
No campo da bioeconomia amazônica, qual tem sido o papel da Embrapa no fomento a produtos como açaí e castanhas, e na promoção da inclusão de povos indígenas nesses processos?
SM – O conhecimento científico e os saberes das comunidades tradicionais amazônicas são a chave para o desenvolvimento da região. As tecnologias sociais para a agregação de valor às cadeias produtivas estão na base da agenda que norteia as estratégias da pesquisa. Na Amazônia, o potencial da bioeconomia é a direção para que as famílias de agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais tenham mecanismos para melhorar a qualidade de vida.
Ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação relacionadas à bioeconomia na Amazônia são prioridades da Embrapa. Em 2023, teve início o projeto de um plano estratégico para o fortalecimento da região. A iniciativa abrange os nove centros de pesquisa da Amazônia Legal e outras instituições envolvidas com o desenvolvimento do bioma. São mais de 300 pesquisadores e 140 projetos de pesquisa em andamento na região.
De que forma a pesquisa agropecuária nacional pode responder às demandas por alimentos mais saudáveis e transição energética sustentável?
SM – Eu diria que essa é uma pauta prioritária das instituições de pesquisa agropecuária desde muito tempo, sobretudo em função dos cenários do futuro, que, aliás, já estão acontecendo. Lidamos com as mudanças do clima, com a necessidade de adoção de práticas mais sustentáveis. Estamos em constante conexão com os setores envolvidos no agro e é daí que surgem as demandas. A pesquisa sempre procura antecipar as soluções tecnológicas e a inovação. Para isso, conta com parcerias, cooperação, investimento, intercâmbio de conhecimento e outras estratégias que contribuem para que a ciência se desenvolva.
Desde sua criação em 1973, a Embrapa é protagonista na modernização da agricultura e pecuária brasileiras. Como avaliar a contribuição da instituição para tornar o Brasil um dos principais produtores e exportadores de alimentos do mundo?
SM – Podemos considerar que o papel transformador da Embrapa já veio registrado no DNA da empresa. À época, o Brasil precisava deixar de ser prioritariamente importador de alimentos, e foi justamente esta a grande missão dada à Embrapa, ao apostar no investimento em capacitação e qualificação de profissionais nas melhores instituições de pesquisa do mundo.
De que forma você avalia o agro brasileiro, do ponto de vista da sustentabilidade e eficiência, na comparação com outros países e blocos, como EUA e União Europeia?
SM – O desenvolvimento do agro brasileiro tem sido pautado a partir da ciência e do apoio de uma grande rede de parcerias que garantem ao país uma posição de liderança, não só na produtividade, como na adoção de práticas relacionadas à sustentabilidade. Prova disso é o interesse de instituições de pesquisa estrangeiras.
Em um país tropical, o agro precisou superar desafios e encontrar formas de conquistar espaço entre os maiores produtores e exportadores de alimento. A pesquisa foi fundamental porque desenvolveu instrumentos tecnológicos e inovações que dão suporte a esse potencial hoje consolidado.
A contribuição brasileira ao agro de outros países também tem sido muito relevante e o intercâmbio de conhecimento em áreas tecnicamente muito avançadas fortalecem as parcerias.
Qual deve ser o papel da Embrapa na manutenção da competitividade do agronegócio brasileiro?
SM – Essa é uma pergunta constante na agenda de todos os pesquisadores da empresa. É o que norteia a nossa pauta de projetos, na busca por parcerias, no intercâmbio de conhecimento entre as maiores e melhores instituições científicas do mundo, no desenvolvimento de inovação, enfim, essa é a essência que motivou a criação e move a Embrapa. Trata-se de uma instituição concebida para prospecção, para o futuro, para a antecipação de estratégicas e cenários.
A tecnologia agropecuária hoje precisa contemplar, ao mesmo tempo, padrões sustentáveis, produtividade, capacidade adaptativa e resistência frente às mudanças do clima e ainda ser acessível a um maior número possível de segmentos envolvidos na produção e na segurança alimentar.
A Embrapa tem essa consciência.